De Itatiba para o mundo — e para as salas de cinema do Belas Artes
- Marcelo Canquerino
- 27 de jun. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 2 de jul. de 2023

Daniel trabalhou muita na cobertura de filmes exibidos no Belas. Imagem: Reprodução/Facebook
Em meados de setembro de 2016, um filme brasileiro se tornou o pontapé que eu precisava para começar a criar vídeos na internet sobre cinema e perseguir os meus sonhos na cidade grande. Assisti Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, em um cinema de shopping em Campinas, e no mesmo ano, entre outubro e novembro, comecei a ir com mais frequência para São Paulo em busca de trabalhar com crítica. Foi lá, em dezembro, na rua da Consolação, que entrei no Cine Belas Artes pela primeira vez — e isso mudou a minha vida.
Rebobinemos a fita para contar essa história direito. Meu nome é Daniel Serafim. Tenho 36 anos e sou de uma cidadezinha do interior chamada Itatiba. Sou jornalista de profissão, mas não de formação, desde 2016, quando consegui me embrenhar no meio da crítica cinematográfica. O que me possibilitou conseguir esse feito foi uma especialização da Unicamp na área de jornalismo cultural. A universidade sempre deu muitas oportunidades, mesmo para aqueles que nunca haviam cursado faculdade, como eu. Entre 2014 e 2016, a discussão sobre ser obrigatório ou não ser formado para exercer a profissão de jornalista estava em alta — e eu me beneficiei do debate. O curso da Unicamp era voltado para quem tivesse alguma experiência no mercado, e desde 2008 eu havia trabalhado no jornal e na televisão local da minha cidade. Com as ferramentas necessárias em mãos, eu me joguei de cabeça e decidi colocar em prática tudo aquilo que estava aprendendo. Meti as caras em São Paulo e a coisa deu certo.

Daniel com seu diploma da Unicamp. Imagem: Reprodução/Facebook
Foi uma batalha. Como na época não tinha emprego fixo, entre 2016 e 2018, eu não conseguia me mudar para a capital. Mas, de segunda a quarta, suava a camisa em Itatiba, e quando chegava quinta e sexta-feira, era hora de ir suar a camisa lá nos cinemas da Avenida Paulista. Nessa época, mais especificamente em dezembro de 2016, comecei a frequentar o Belas Artes. Lembro que peguei a temporada do Oscar, então foi aquela correria com os filmes febre do momento. Esse espaço me encantou, e foi quando criei minha conta no Instagram para falar de cinema. Com o decorrer do tempo, o @canaismaiscinema ganhou forma e corpo.
Ter me dirigido direto para o Belas Artes quando vim para São Paulo não foi mera coincidência, assim como minha preferência pelos cinemas de rua. Antes mesmo de chegar, eu já acompanhava um crítico de cinema que sempre batia ponto no programa do Ronnie Von, o Christian Patermann. Naquela época, as estreias não eram na quinta-feira como é hoje, mas sim na sexta. Então, toda sexta ele falava dos filmes que estavam chegando nos cinemas e eu não perdia nada, anotava tudo com papel e caneta. E o Christian falava muito dos filmes que estreavam no Belas Artes e no Reserva Cultural — outro cinema de rua que fica ali embaixo do prédio da Gazeta. Além da televisão, ele também aparecia para mim na Vejinha, a revista menor que vem com a revista VEJA. Eles tinham uma sessão dedicada às estreias e ao circuito dos cinemas de rua. Então, mesmo antes de conhecer pessoalmente, esse cinema já tinha se tornado uma grande referência para mim em meados de 2012.
Cheguei até a acompanhar os problemas pelos quais o Belas Artes passou na época, mas de longe, na minha cidade. Lembro perfeitamente desse momento, quando o cinema realmente fechou por um tempo, em 2011, pela falta de patrocínio. Teve uma mobilização popular para que isso não acontecesse, mas infelizmente aconteceu. Saiu em tudo quanto é jornal e programa de televisão. E o mais maluco é que eu pensava: “como um cinema que faz parte da história de uma das maiores cidades do país está quase fechando?”. Era inconcebível (e triste) na minha cabeça.
Graças a Deus o Belas Artes sobreviveu e continua de pé até hoje. Nas minhas idas a São Paulo, ele se tornou o cinema que eu mais frequentava. Minha paixão e dedicação pela sétima arte me levou a colher vários frutos. O meu canal do Instagram ia muito bem e eu comecei a receber grandes oportunidades. De vez em quando era convidado do programa de rádio da Jovem Pan — e não, não era para falar do Bolsonaro, mas sim comentar premiações como Globo de Ouro, e os filmes em cartaz.
Apesar de estar vivendo um sonho, ficar entre Itatiba e São Paulo não foi tarefa fácil. Era complicado lidar com os custos de hostel e passagem sem um emprego fixo. Eu vivia pedindo ingressos para o pessoal do Belas enquanto produzia conteúdo sobre os filmes que assistia lá. Em 31 de dezembro de 2017 eles finalmente me notaram. A chefe de comunicação da época, Carolina Alonso, viu todo o meu amor e dedicação pela arte e foi atrás de conhecer meu trabalho, minha história. Eles, então, decidiram me apoiar e eu ganhei uma espécie de credencial “vitalícia” de imprensa para assistir a qualquer filme sem pagar nada. A contrapartida era gerar conteúdo — algo que eu já fazia.

Daniel e seu vale ingresso para cobrir os filmes exibidos no Caixa Belas Artes. Imagem: Reprodução/Facebook
Essa credencial, que guardo com o maior carinho até hoje, foi a responsável por mudar o rumo da história. Outros cinemas de rua, como Reserva Cultural e o Cinesesc, começaram a apoiar meu trabalho, a exemplo do Belas. Foi uma grande conquista. Até mesmo o pessoal da minha cidade passou a fazer doações para eu manter o canal — e tenho certeza que os itatibenses conhecem este cinema até hoje do tanto que eu falei.
Desde o princípio, no momento em que saí de Itatiba, meu interesse era pelo circuito de filmes mais alternativos, do cinema europeu, até o asiático e latino. Neste quesito, a programação diferenciada do Belas Artes era tudo o que eu procurava. Em que outros lugares, por exemplo, eu teria a oportunidade de assistir um belíssimo documentário brasileiro sobre as videolocadoras de São Paulo? Pois foi lá que pude ver CineMagia: a história das videolocadoras de São Paulo (2017), de Alan Oliveira. Além dos títulos diferenciados, que você não encontra facilmente em qualquer lugar, o cinema também exibia algumas produções por muito tempo — diferente da grande maioria dos circuitos comerciais. Jamais esqueci do recorde em tempo de exibição que Medos Privados em Lugares Públicos (2006), de Alain Resnais, bateu no Belas Artes. O filme estreou por aqui em 2007 e ficou em cartaz por três anos e meio. Dava em tudo quanto é jornal essa marca histórica. Mais de 80 mil pessoas assistiram na época. A exibição só parou quando o cinema fechou, pela falta de patrocínio. Mas acredite, o longa voltou para as telonas no momento em que eles reabriram como Caixa Belas Artes.
Além da oferta de produções variadas, as madrugadas do cinema eram muito famosas. O Noitão que mais me marcou foi o meu primeiro, do diretor Christopher Nolan, com a pré-estreia de Dunkirk, em julho de 2017. Foi uma escolha de lançamento muito assertiva porque em questão de horas as salas do Belas lotaram.
Foram todas essas características que me encantaram neste cinema. Considero um ambiente que te convida a ir além da experiência de assistir ao filme. O pessoal que é frequentador de lá, geralmente é a galera da resistência. Um público fiel, cativo, que gosta de debater a sétima arte e tomar um café. O próprio espaço te convida (e incentiva) a fazer isso. É um lugar tão convidativo, que foi lá mesmo, em seus corredores, que conheci minha maior inspiração: o jornalista e crítico de cinema Rubens Ewald Filho. Na finada época das mídias físicas, eu sempre deixava à mão, na minha cômoda, os DVD’s do Rubens com os guias de lançamento do cinema e das videolocadoras. Ele vivia perambulando pelo Belas e até nos sentávamos juntos lá para conversar. Era o Rubens me chamar pelo nome que eu chorava de emoção. Quando ele morreu, em 2019, foi um grande choque. Este grande crítico brasileiro fez parte da minha história, e o simples fato de saber que ele se lembrava de mim é o que mais me toca. Eternizado no Belas Artes, a sala 3 carrega seu nome até hoje.

Daniel com o crítico de cinema Rubens Ewald Filho. Imagem: Reprodução/Facebook
Com a chegada da pandemia, em 2020, minha relação com os cinemas de São Paulo sofreu uma pausa. Tinha me tornado amigo dos funcionários do Belas, então acompanhei essa crise no setor de perto. O cinema, assim como todos os outros, fechou porque era necessário naquele momento. E depois, na retomada das atividades presenciais, as coisas melhoraram, de fato, mas sinto que não é como antes. Após a reabertura, eu só consegui assistir Batman (2022), no começo de 2022, e tudo estava diferente: barreiras de acrílico nas bilheterias, menos pessoas. Atualmente, não trabalho mais de forma ativa como crítico de cinema em decorrência de uma série de eventos pessoais e pelas mudanças geradas pela Covid-19. Estou me reorganizando e recomeçando do jeito que dá em Itatiba — mas quem sabe um dia eu retorne ao universo da crítica, que tanto me acolheu e foi responsável por transformar a minha história.
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